
Autoráculo, o Zine
Tá? Mas de onde vem o conhecimento?
Não estou falando das informações que tiramos da internet ou de um livro, mas desse universo de coisas que a gente simplesmente sabe, sem ter que se esforçar demais.
Toda a vida ouvimos dizer que o conhecimento foi transmitido por gerações e gerações de pessoas até chegar nossa vez, mas acho difícil acreditar que ninguém quebrou essa corrente e que todo ser humano teve paciência de compartilhar sua sabedoria antes de morrer. Ou ainda, que a morte não tenha queimado vilas inteiras, poupando apenas as crianças, que eram pequenas demais para servirem de hospedeiras para nossa base de conhecimento.
Não é possível que a vida tenha sido assim tão ingênua de confiar nessas cabecinhas ocas como cofre de um conteúdo tão valioso. Gosto de pensar que ela teve a malícia de camuflá-lo em algum lugar do corpo por garantia. Atrás de um órgão que ninguém mais repara, igual quando a gente acha uma roupa que gosta numa loja, mas não tem certeza se vai levar e esconde num cabide lá no fundo pra ninguém mais achar.
Tem uma história interessante sobre o oráculo de Delfos.
Diz a lenda que o deus Apolo matou Píton, uma grande serpente/dragão nas terras de Delfos, e que essa cobra se decompôs numa fenda liberando gases estranhos, que quando inalados pelas pessoas traziam profecias à tona.
Segundo outras fontes também nada confiáveis, as pessoas descobriram esse fenômeno e viajavam para as montanhas de Delfos para experimentarem os gases proféticos entre as pedras. Mas é claro que os sacerdotes da época não deixaram que elas simplesmente cheirassem suas perguntas em paz e instituíram um sistema em que apenas algumas camponesas, as que eles considerassem sagradas, pudessem inalar esses gases pra cantar as profecias que, agora, vinham dos deuses.
Diziam também que era perigoso que as pessoas tentassem fazer isso sozinhas, já que poderiam cair na fenda e morrer. Mas pra mim era balela, essa preocupação nada tinha a ver com quedas e grandes aglomerações de pessoas nas montanhas, mas com o perigo que é, pra qualquer autoridade, deixar que as pessoas obtenham suas próprias respostas.
Seria bem mais esperto confiar nessa espécie de pen drive espetado no DNA para guardar as informações cruciais da sobrevivência do que depender exclusivamente dos contadores de histórias.
E eu acho que esse “órgão” fica quietinho a maior parte do tempo, mas de vez em quando, dependendo de como a gente se mexe, ele é pressionado e libera perguntas que se a gente insistir nelas por algum tempo, viram rastros para o conhecimento da vida que está disponível, basta saber espremer.
As pessoas que aspiram os próprios questionamentos não são tão fáceis de controlar como aquelas que acreditam que a sabedoria só pode vir da boca dos deuses e não da de uma pessoa comum.
O mais surpreendente nessa história é que, mais recentemente, geólogos descobriram que Delfos, que está entre duas falhas geológicas, tem mesmo seu subsolo composto por uma pedra betuminosa que talvez, nas condições certas, produziria etileno e causaria alucinações se fosse inalado. Tudo indica que as profecias não vinham dos deuses, mas do efeito da substância em contato com a mente humana.
Mas faz sentido que eles tenham pensado que era algo espiritual.
Toda vez que consigo pressionar essa coisa enquanto escrevo, também tenho a sensação de experimentar o divino, uma sabedoria que não parece originada das experiências de uma pessoa que mal sai de casa. Parece vir de algo que me antecede, como
uma irmã mais velha, a voz de uma viajante que já viveu muito. E talvez seja, talvez o conhecimento de viver dos antepassados tenha se encrustado nesse órgão e por isso tem coisas que a gente simplesmente sabe, mas também pode ser que a gente aprende mais vivendo do que percebe. De qualquer forma, não precisa ter nenhuma origem externa para ser sagrado.
Me irrita que a gente não consiga acreditar na nossa divindade, mesmo tendo evidências diárias dela.
Não precisamos viajar pra Delfos, nem pro céu, nem pra lugar nenhum para ouvir nossas próprias perguntas, respostas e profecias. Já está tudo incluso nesse botão que solta gases investigativos.
Nesse órgãozinho localizado não sei aonde, que em homenagem aos peregrinos de Delfos, eu batizo de Autoráculo.
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“Zumbi das Conchas” é uma produção original do Autoráculo. Todos os direitos reservados.
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Texto, ilustração, design e fotografia: Jamyle R. Guedes
Thank you:
Kleber Monteiro Lima, por tudo
* Ah! Os prints da localização do Templo de Apolo foram retirados do Google Street View.
É um lugar interessante pra se visitar mesmo virtualmente.